O poder em vida não é garantia de um reconhecimento imorredouro. Essa é a sensação que tenho todas as vezes que entro no cemitério público de Abaetetuba e vejo aquele túmulo logo na entrada do campo santo. Impossível ignorá-lo, pela simbologia da fé. Ali está uma mulher que o tempo transformou em santa popular. Mais alguns passos e, quase em frente à capela nos deparamos com o mausoléu imponente de quem um dia teve dinheiro, muito dinheiro, e, por extensão, poder, muito poder. Ela, Ana Cristina. Ele, Coronel Caripuna. Falaremos, ainda, de um terceiro personagem.
15 de agosto de 1884. A pequena vila de Abaeté comemorava mais um aniversário da adesão do Pará à independência. Foi nessa data bastante festejada naquela época que a localidade ganhava seu primeiro jornal.
O Abaeteense trazia no seu primeiro número um retrato da vila para a posteridade:"(Abaeté) hoje possue apenas as ruas do coronel Caripuna e Siqueira Mendes, travessas do Tenente-Coronel Costa, da Conceição e mais três travessas com poucas casas, a praça 25 de março e o largo do Espírito Santo, sendo a mais bella rua a de Siqueira Mendes, edificada recentemente e que possue bons prédios e que é espaçosa e direita". O dono do jornal era o poderoso Coronel Antônio Francisco Corrêa Caripuna. Era ele quem mandava e desmandava. Rico dono de terras, Caripuna mantinha engenhos para a produção de cachaça, numa época em que a cultura canavieira era movida pelos braços dos escravos.
O Abaeteense era mais uma forma dele reafirmar esse poderio econômico e político. Tão poderoso que a morte dele, em 1887, levou a nata da sociedade abaeteense às ruas. O túmulo seria todo de mármore importado da Europa. O mais belo dos jazigos já construídos por estas bandas.
O Abaeteense passaria a ter outro dono. Claro, outro senhor poderoso. O dono de engenho Manoel João Pinheiro aparentemente pouco se importava com a situação do negro cativo. O periódico comandado por ele constantemente publicava notas oferecendo recompensa a quem desse notícias de negros fugidos das senzalas. O próprio primo havia sido vítima do roubo de uma montaria. “O ladrão, sem dúvida, foi o escravo Joaquim”, sentenciava o jornal. E completava: “É fácil de conhecê-lo: tem de menor o dedo de um pé e a metade de um da mão”.
A vida, contudo, pregaria uma peça no senhor escravocrata. Um belo dia, Manuel João Pinheiro percorria o rio Moju, quando conheceu uma escrava por quem sentiu forte atração. A negra não foi somente comprada. Acabou sendo desposada pelo novo proprietário, com o qual tivera sete filhos. Reza a lenda que, de tão bondosa, a escrava chamada Ana Cristina deixou profunda dor aos abaeteenses quando morreu. Da saudade para a devoção foi um pulo. Acabou virando santa popular.
O jazigo do poderoso Caripuna resiste ao tempo. Não deixou de receber deferências, mesmo que por vias tortuosas. Todos os anos, aparecem por lá centenas de fitas coloridas, mas é só pela pura ignorância de quem julga ser ali um monumento a um anjo, pelo fato do mausoléu ter sido ornamentado durante mais de cento e vinte anos por uma figura angelical. O capitão da Guarda Nacional do Império Manuel João Pinheiro desapareceu por completo. Não há registros sobre a data de sua morte. Nem o local onde seu corpo está sepultado. Ainda hoje, o túmulo da ex-escrava Ana Cristina é um dos mais visitados. São milhares de velas acesas, circundadas por centenas de pedidos e agradecimentos por graças alcançadas. Sem contar as inúmeras bonecas deixadas durante o ano todo. Como não há história totalmente perfeita há, sim, os que veneram Ana Cristina pensando tratar-se de uma criança.
Naldo Araújo
Texto publicado originalmente em janeiro de 2009