Naldo Araújo
As horas em Abaeté eram marcadas de um jeito diferente na minha infância. Eram marcadas pelos sons e reafirmadas pelos cheiros da cidade pequena dos anos 70. Assim, começávamos o dia, nós moradores daqueles arredores da beira, com a algazarra que vinha da rua. Ainda era possível ouvir a cantoria dos galos, uns aqui, outros acolá, e, em instantes, todos compondo um único recital da alvorada. Viriam, então, a onomatopéica procissão dos carregadores abrindo caminho com seus “titi-titis”; o ranger dos popopôs, num incessante ir e vir à beira-mar; o Vieira, que transformava seu carro-som em uma espécie de rádio, pelo qual ele lia as notícias do jornal do dia e até comentava os fatos. Os sonoros Copacabana impregnariam para sempre, nos ouvidos de toda uma geração, os seus prefixos e sufixos com aquela música que eu nunca descobri de quem era a autoria ( e que até hoje marcam o início e o encerramento das transmissões). Mas, as frases... essas ficaram: “Ao raiar de um novo dia, quando o sol distribui seus raios luminosos por todo o horizonte...” – A luz, os sons, naturais ou artificias, tudo remetia à aurora do dia, à aurora da vida!
E têm também os cheiros! Os inícios de tarde, silenciosos e modorrentos, eram invadidos por aquele cheiro inconfundível de café que exalava do prédio do Café Abaeté, percorria a praça, avançava por algumas casas, ia às narinas dos leões de pedra que adornavam a residência dos Ferreira (as peças foram sendo removidas de lugar de acordo com a especulação imobiliária, mas ainda estão lá) reafirmando a lembrança de que estávamos prontos para mais uma etapa do dia. O cafezinho era o despertar de uma sesta tranqüila. Estamos no auge do dia... no auge da vida!
As tardes permaneciam assim, no quase-silêncio. Quando ainda não haviam inventado os camelôs, os mototáxis e o boom de carros para uma cidade que não se preparou para tal, as vias públicas tinham um ar de civilidade, brincávamos nas calçadas e, quando o comércio começava a fechar as portas, montávamos as traves de pau no meio das ruas. Só anos depois fui entender o ódio dos comerciantes quando iam abrir o estabelecimento no dia seguinte e deparavam com as paredes “decoradas” com as marcas de bola. “...É mais uma noite que chega, envolvendo-nos com seu manto negro...”, sentenciava o Copacabana. Mesmo com a luz elétrica nas ruas, ainda era possível ver o Domingos acender lamparinas naquela portinha, onde vendia-se uma quarta de manteiga, dez bolachas Maria, umas cinco colheres de óleo de cozinha...” (não se acende mais lamparinas, mas até hoje, o Domingos está lá, na mesma portinha, na D. Pedro II, bem no centro comercial).
Antes, ouvíamos o alto-falante da igreja matriz entoar as notas tristes dos hinos sacros. Feito o lamúrio da despedida. Eis o crepúsculo da vida. Será?
Ainda tínhamos a sobrevida. Para os do meu tempo, talvez aquela fosse a melhor hora do dia. Pena que era tão fugaz! Pira-esconde, pião, bandeirinha (veja bem, tinha bandeirinha de homem, também). Com a variação no cardápio de opções, ainda tirávamos um tempinho para contar e ouvir histórias assustadoras. Não tínhamos o Discovery Channel, nem o National Geographic para dizer que aquilo era tudo papo furado. A gurizada daquela época acreditava e tremia com a história da moça que se vestia de branco e dormia no cemitério! Mas, nem tudo é eterno. Não tinha mais jeito, mesmo. Era voltar para casa naquele instante ou castigo na certa. Afinal, o Cine Imperador começava a executar o tema do filme “The good, the bad and the ugly”. Era o início da sessão, às oito horas da noite. E era o aviso de que aquela era hora de moleque estar em casa.
Belo texto!
ResponderExcluirLembro que existia a missa das 5 horas da manhâ de domingo na Igreja da Conceição,hoje em dia caso voltassemos a ter essa missa seriamos assaltados dentro da Igreja. Lembro também que no Mercado de Carne Municipal vendiam paneiros e cestas. Nesse época todas as crianças estavam nas camas/redes após a novela das oitos, ou antes!