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quinta-feira, 1 de abril de 2010

A VIA CRUCIS DE AHSVERUS


FRANCISCO GIRARD (FIFITI)



Ora vejam, há bastante tempo lidam com o ofício do trabalho em dois expedientes. Por ser prática habitual do lugar, almoçam com a família em casa, e depois retornam ao batente até o cair da tarde. O comércio do interior permite certas comodidades, mas tem os incômodos de abrir num feriado ou em inusitados horários para socorrer um único cliente displicente, ou necessitado por fatalidade. A cidade dorme, a sesta é garantida pelo silêncio que todos gozam em respeito à pontualidade do horário estabelecido. Mantinha-se o rigor da exatidão no horário de abertura, mas o costume de encerrar, ainda que expirasse o horário, ficava por conta e determinação do último freguês. Nessa época tinham a impressão que o tempo era mais estendido, viviam cada dia intensamente sem malícia de competição.
Abraçou-se ao trabalho quando precisou dele para garantir a sobrevivência e o amor que coincidentemente nutria por Doralice. Depois de estabelecido, garantiu meio de não se preocupar com o dia vindouro. Homem determinado; dedicava-se de corpo e alma à família. Do ofício que o pai exercia herdou a prática do comércio, mas nunca o desejo pela profissão. Não esquecera a solidão que sua mãe sofria com a ausência do pai nas longas viagens de regatão pelo rio Amazonas.
Antônio Oliveira era um comerciante respeitado pelos princípios que rege o caráter, a dignidade, a honestidade. Homem de bem. Doralice mal podia crer que sua felicidade era garantida não só pelo amor correspondido, como também pelos valores morais que reunia naquele homem um pai de família exemplar.
Ao chegar depois de um dia de trabalho, estava a fidelizar sua rotina sentado em sua cadeira de embalo na varanda da casa. Acendia seu cigarro de hábito noturno, consorciado vez por outra, na companhia do amigo, este, funcionário público, viúvo, pai de dois meninos amigos de seu filho. Contumaz leitor; demonstrava muita personalidade. A reciprocidade da conversa mantinha o prazer da assiduidade. Falavam da proximidade da Semana Santa, da traição de Judas, quando a conversa foi interrompida pela voz grave que intimidou a olharem simultaneamente dando conta da visita:
- Boa noite Seu Oliveira, posso entrar?
A surpresa da chegada de Rocha lhe causa imensa satisfação, desculpando-se com o amigo, levanta-se apressado, atravessa o jardim em direção ao portão de ferro que notabilizou o serralheiro, e o recebe em cumprimentos de hospitalidade.
- A casa é nossa, vamos entrando. Garanto que a inusitada visita é de grande satisfação!
- Ah, seu Oliveira, causei-lhe constrangimento, apesar de fina, não deixa de molhar. Queira aceitar minhas desculpas; sabemos que a chuva é perpétua nesse período. Atenha-se sob meu guarda-chuva. Mas quero dizer que não dimensiono o esforço, é um prazer visitar o amigo.
- Deixe-lhe apresentar meu companheiro, muito mais que um amigo, é como se fôssemos irmãos. Levantando e curvando indelevelmente o corpo, estende a mão e com a outra reforça os cumprimentos na certeza da estima endossada: - Adelino Rodrigues, muito prazer! Mas pode me chamar de seu Lino.
- Me chamo Grudédio Rocha, sou caixeiro viajante, venho na intenção de promover lucros e novidades ao seu Oliveira.
- Pelo jeito, diz o anfitrião, vai passar a semana conosco?
- Quisera! Vou na quinta-feira, o barco-motor Cali Andares me oferece regresso. Não deixa de parecer cansativo, mas estou acostumado a dormir com a trepidação e cheiro de combustível da máquina funcionando. Já os de primeira viagem, ficam em vigília deitados na rede; da pra imaginar. Demais, essa vida nos condiciona e passamos a gostar do que fazemos. Vejam só: anteontem estava na região bragantina, onde passei a semana, agora estou cá em Abaetetuba com vocês, de forma que não acostumaria num trabalho fixo, tipo comércio, me sentiria, com sinceridade e respeito, um tanto angustiado. Tenho certeza que o Sr Antônio Oliveira estranharia o contrário.
- Sente-se seu Rocha. Confesso que estranharia sua lida. Aceita um café?
- Obrigado, à noite esta fria e o café é bem sugestivo! Vocês mantêm o prazer da conversa. Podem dar continuidade e, o momento é oportuno pra quem quer fazer horas.
Estávamos conversando assim que você chegou, a respeito da Semana Santa. Dizia o Nilo: Acho cabível uma interpretação pelo que fez Judas, afinal tinha que se consumar o que estava predestinado, e se ele não dedurasse, se ele falhasse o que seria de Cristo? Não é isso amigo?
Atêm-se da palavra e complementa o Nilo: - Sim. Não haveria a crucificação e a salvação do mundo estaria comprometida. Concordam?
- Além de concordar, gostaria de esclarecer que o papel poderia ser desempenhado por qualquer discípulo! O difícil personagem premiou Judas. Tanto que se imortalizou. Está se aproximando o dia de sua malhação. Não conseguiu libertar-se negando a vida e, condenou o mundo, suicidando-se. Os Judeus sofrem com a discriminação, - enfatizou o viajante.
- O pecado de Pedro não foi menor, - justifica seu Oliveira; negou Jesus três vezes. Lembrou o que o mestre dissera apenas quando o galo cantou. Redimiu-se do pecado pedindo perdão, eis a diferença da ação.
- Diz à lenda que na sexta feira da paixão um Judeu importunou com ironias Jesus na via crucis, no que ele disse: Hás de ser errante no mundo até que eu volte!
Continuou seu Oliveira - parece que a maldição o quis em toda parte do mundo. Nós, Abaetetubenses, temos o nosso conhecido Judeu, de estatura elevada, andar lépido, e compleição delgada; cujo corpo pende sobremaneira na parte superior. Veste-se com calças de pontuação disforme da sua, ajustada pelo furo improvisado no cinto, cujas pinças avulsas se formam na camisa de mangas e na calça que a recebe por dentro. Usa todos os botões da sempre camisa branca nas suas devidas casas. Convencionou-se com o odor exalando a suor devido à exaustão do uso contínuo.
Esse é o nosso Errante Ahsverus - amaldiçoado por Jesus na via crucis - conhecido pela alcunha de Judeu das Máquinas que simplifica as despesas ao unificar a morada com o trabalho na esquina da Siqueira Mendes (Moinha) com a 15 Agosto.
- Com essa precisão, não tenho dúvidas! - complementa Rocha. Você me arremeteu ao personagem. Exatamente! Não tem outro! O conheci outro dia pechinchando no comércio da frente da cidade, lá no Armazém Vadico. Se expressa com gestos que parece falar com o corpo. No rosto, os zigomas sobressaem-se pela ausência dos dentes, deixando com a aparência e fala única dos banguelas. Os cabelos foram-se; os de má vontade se mantêm ralos nas laterais, expondo as hastes dos óculos redondos e de lentes espessas como lupas, alterando sua fisionomia.
- Deixando levar-me pela imaginação, recordo-me, - diz Seu Oliveira. É, recordo-me, por que ficou. Revivo como se fosse hoje, não o diria que lembro, porque o lembrado, dizia o filosofo, é também esquecido. Sim, recordo-me que a cidade na década de setenta era pacata, e nossos filhos divertiam-se aprazivelmente tomando banho na ponte da fábrica do Guaraná Amazônia. Eram tantos que a vozearia se fazia perceber nos arredores da moinha. Unânimes gritavam: Lagartão! Lagartão! Fala lagartão! Era o Judeu das Máquinas sendo malhado pêlo subapelido, no que retribuía redargüindo impropérios, apanhando e jogando sobras de pedaços de ferro que circundavam sua oficina. Os moleques dispersavam-se para não serem alvo do furioso arremessador. Essa ritual era à tarde, sincronizado com as enchentes das marés durante o ano todo.
No período da Semana Santa, as enchentes ficam acima da média, premiando a molecada que aproveita em algazarra. Mas o nosso Judeu, pelo fato de fazer morada onde trabalhava, mantinha-se incólume, pela reclusão que fazia além da sexta-feira da paixão, quando a cidade silenciava. Certo dia, vai fazer ano, foi em junho; fui surpreendido pelo Judeu com delação que fez de um de meus filhos, que o apelidava. Fingi que o castigaria pelo ato insano da ofensa, no que ele amenizou demonstrando certa comiseração. Mas nada que não tentasse levar alguma barganha, afinal era freguês do nosso armazém.
Nunca o destratei nem tão pouco o estimei, - finaliza seu Oliveira. Tenho minhas conclusões a respeito desse povo. No íntimo, quer saber mesmo; sou antissemita! Não consigo buscar explicações para tamanha traição nos compêndios da imaginação. O que lhes parece?
- Veja bem seu Oliveira, - dizia o caixeiro ao cabo de alguns minutos. Eles foram bastante perseguidos, por serem nômades, desenvolveram a habilidade da abstração. Os Hebreus já demonstravam que seu apego ao dinheiro fora uma imposição condicionada. Era-lhe proibido possuir qualquer bem imóvel, o que levava a carregarem consigo todos os recursos adquiridos.
- Sem esquecer, - disse o funcionário público, que quando libertados da escravidão do Egito, na ausência de Moises, confeccionaram um bezerro de ouro para adorar. Esse exemplo bíblico ilustra muito bem o que eles carregavam consigo. Sinceramente os vejo como um povo notável, que prima à família a religião e culturalmente, nem pensar, vem se perpetuando. Até pouco tempo sem uma nação estabelecida, viviam regidos por diversificadas instituições mundo afora, e conseguem manter seus laços de unidade aonde quer que se encontrem. Há milênios usam a mesma máxima: Nada é bom para eles se não for também para seus vizinhos, estejam onde estiverem.
- O que se ouve sempre é que são usurários, exploradores e vingativos, - disse Oliveira.
- Vingativo! Você me faz lembrar um personagem Shakespeariano. Peça esta, deduz-se que tenha sido resultado da expulsão dos judeus da Inglaterra na idade média! Empolgando-se, - detalhou o viajante: Shylock, o judeu, propôs para sua garantia que o fiador Antônio lhe pagasse com uma libra de sua própria carne, caso se tornasse inadimplente.
- Sempre denegriram a imagem desse povo. Num dia os perseguiam, no outro pediam crédito. A história nos confessa, - disse Lino. Shakespeare era um investidor do Globe Theater, quem sabe essa peça não fora produto de seus desafetos. Os judeus são célebres, veja esse paradoxo: Wagner, o grande compositor alemão, um antissemita declarado e imortalizado por sua música, teve sua obra regida e mais bem executada por grandes maestros judeus. E tem mais, o amigo Oliveira, - faz um afago carinhoso em seu ombro - não foge à regra, trás esse segundo nome por herança dos judeus portugueses, perseguidos pelo cristianismo. Eram os cristãos novos, os conversos que relutavam secretamente pelo judaísmo. Para fugirem da inquisição, adotaram os nomes das árvores frutíferas como seu segundo nome: Macieira; Nogueira; Pereira... E, como vimos seu Oliveira, o Sr é arrimo dessa geração.
- Doralice! - Gritou Oliveira, manda servir mais um café! A conversa está ficando entusiasmada! Juro que fiquei desconsertado com a surpresa da herança.
- Desculpe, não queria causar constrangimentos, mas o amigo Lino não podia poupar esclarecimento.
- Pelo menos o Antônio aqui, - batendo com a mão no peito - já tem a sensata explicação do segundo nome. Portanto não é coincidência e sim descendência esse meu apego ao dinheiro. Ouço comentários jocosos que os apreciam não pelo que pode fazer, mas pelo prazer intrínseco.
Os convivas trocaram olhares e sorriram com a conclusão do anfitrião. Levantando e desculpando-se, despede-se Rocha.
- Confesso que a conversa está muito aprazível amigos, mas amanhã tenho um dia puxado pela frente. Queiram me desculpar, uma boa noite!
A sós, ficaram se perguntando o que levara o Grudédio a optar por essa vida de nômade ou coisa que o valha. Será as mulheres conquistadas em cada cidade que o fazem abominar o trabalho de cárcere? Ou a remuneração compensa o sacrifício? Concluíram com a máxima: Cada um tem a vida que merece. Para muitos, ser feliz não é destino, é uma questão de escolha.
- Mas, por falar em segundos nomes, estou a me interrogar a origem do nome Grudédio. Sinceramente Oliveira, não quis ser indelicado com seu amigo Rocha, mas, é comum a prática de batizarmos os filhos com nomes que constem na lista dos santos canonizados pela igreja católica: Pedro; Mateus; João; Ruth; Marta; enfim..., mas, esse nome Grudédio...? Parece-me não constar na lista dos canônicos. Sorrindo disse: Sei lá! acho que vamos entrando em outra onomástica. Aceitemos. De qualquer forma, ele parece ser boa gente. Aproveito também a trégua da chuva e despeço-me. Fique com Deus amigo, até a próxima.

São Luiz (Ma), 27 de Março de 2010

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