POR SOBRE OS TELHADOS DE ABAETÉ
UM TRIBUTO ÀS ANTENAS ESPINHAS DE PEIXE
Naldo Araújo
Até bem pouco tempo atrás, eram elas quem dominavam a paisagem por sobre os telhados de Abaetetuba. Bastava olhar para cima e lá estavam elas, as onipresentes antenas espinhas de peixe, reinando absolutas com todo seu simbolismo. Eram sinal de uma cidade do interior cada vez mais sendo envolvida pela globalização, num tempo em que nem se cogitava usar essa palavra como sinônimo de todo tipo de integração dos povos da Terra. Eram admiradas, por serem, até então, o único instrumento pelo qual as imagens da TV chegavam às nossas casas. E, com seus vários modelos e tamanhos, configuravam-se como referencial de status social. Ficava imaginando como seria bom se tivéssemos antenas com 24 elementos! Um dia, pensava eu, teria um emprego e trocaria nossa pequena espinha de peixe de apenas oito peças. Era a antítese perfeita da nanotecnologia. Tamanho era, sim , documento!
Tomo por base minha verdadeira fixação por tudo o que representasse a melhor captação possível de sinais eletromagnéticos, para concluir, por conta própria, que nasci apaixonado pela comunicação. E, assim, desde muito pequeno, era eu quem sugeria o modelo e o formato da nova antena a ser comprada ( e isso para mim era uma festa). Chegava a ficar horas acompanhando o trabalho dos técnicos de instalação. Isso até o dia em que eu mesmo passei a fazer o serviço (de muito bom grado, diga-se de passagem). Modéstia a parte, não fui um instalador “comum”. Busquei novas formas de alcançar a melhor recepção possível de canais, se bem que tínhamos apenas três, naqueles idos da década de 70. Inventei estruturas “geniais”, como ir emendando grossos canos de ferro, uns sobre outros, utilizando buracos laterais onde ia fazendo a “amarração” com pregos tamanho-família ou mesmo outros pedaços de ferro menores. Era bonito ver nossa antena cada vez mais lá no alto, pairando altaneira sobre o telhado da velha casa de madeira do avô Caetano. Sou do tempo em que, lá de cima, reposicionávamos a antena depois de uma chuvarada, enquanto deixávamos alguém lá embaixo em frente à TV monitorando o sinal.
-E aí, tá bom?
-Tá quase... Aí, roda mais prá esquerda, peraí, um pouco mais pra direita. Agora, agora, deixa, deixa.
Pronto. Havíamos desempenhado com êxito, mais uma vez, nossa missão de verdadeiros exterminadores de “fantasmas” na TV, aquele incômodo vai-e-vem da transmissão, causado por algum obstáculo na viagem do som e da imagem em linha reta através das ondas eletromagnéticas. Um dia, percebi que, para chegar até a antena, teria de passar primeiro por um ninho de cabas que havia se instalado quase na base do ferro de sustentação da espinha de peixe. Não tive dúvidas: vesti um velho paletó do vovô, calcei sapatos e os amarrei na bainha da calça, coloquei luvas que minha irmã havia usado no sete de setembro, cubri o rosto com uma sacola plástica, deixando pequenos furos para respiração e lá fui eu. De “armadura” improvisada e tudo, hermeticamente protegido, comecei mais uma de minhas aventuras em busca da imagem perfeita. E assim, íamos conferir o resultado. O significado de “imagem boa” naqueles idos da década de 70 seria impensável nos dias de hoje. A imagem vinha com pequenos “chuviscos”. Algumas vezes, verdadeiros “trovões”, mesmo. Bastava um relâmpago lá fora, e a TV relampejava junto. E aí vinha a inevitável ordem de algum adulto: “Desliga isso, menino!!!”. Mas pelo menos ainda dava para assistir às emissoras da capital. O caminho ainda estava livre entre as antenas nos altos de nossas casas e as potentes torres geradoras de imagem lá do outro lado da Baía do Guajará. Ficava feliz vendo Tia Mundica podendo assistir todas as noites à novela Mulheres de Areia na TV Marajoara, canal 2; o vovô ligado no Bolso do Repórter, com o Joaquim Antunes, na TV Guajará, canal 4; e todos nós, moleques da casa, torcendo pelo Tarzan, na Sessão da Tarde na novata TV Liberal, canal 7. Aí, vieram os prédios mais altos, produzindo barreiras físicas. Aí, vieram as emissoras locais, produzindo barreiras tecnológicas. E os sinais que vinham de Belém foram ficando pelo caminho.
Até então, o sistema de emissão/recepção de imagens era o mais direto possível. Isso me levou um dia, já estudante de comunicação, a perguntar para um professor de tecnologia da informação, o porquê de, em Abaetetuba, eu poder assistir a algumas emissoras de outros países sul-americanos. Descobri isso meio por acaso, ao revirar (manualmente, claro) o botão de canais e me deparar com imagens meio difusas de uma partida de futebol narrada em castelhano. Verifiquei que isso ocorria em canais “vazios”, tipo canal 3, canal 5, enfim, freqüências que não estavam sendo ocupadas. Foi o bastante para que a turma toda caísse na gargalhada, com alguns gaiatos dizendo coisas do tipo: “Olha, em Abaeté a gente assiste até programa estrangeiro, quá, quá, quá...”. Era estranho, mesmo, num tempo em que nem se falava em TV por assinatura por estas bandas. Mas a sala logo ficaria calada com a explicação do professor Gondim dizendo ser isso perfeitamente possível, aventando a possibilidade de que Abaetetuba fosse uma daquelas cidades com uma espécie de “satélite” natural, uma área propícia a atuar como ímã na recepção de elementos áudio-visuais (complicado, né?). Suprema vingança ! Agora era eu quem sorria: o conhecimento empírico do caboclo do interior suplantando a ineficiência teórica dos “civilizados” da metrópole.
As velhas e antológicas antenas espinhas de peixes recebiam e nos repassavam um turbilhão de emoções, alegrias e tristezas. Quantos beijos de novela? Quantos latidos heróicos do Rin-tin-tin? Quantas vezes não sonhamos em viver em um lugar fantástico como o Sítio do Pica-Pau Amarelo? Até hoje, não suporto a idéia de que aquela família continua lá, no Elo Perdido, fazendo companhia ao Tchaca! Imagens e sons de um mundo mágico, que viajavam de bem longe, trafegavam por cada elemento de nossas antenas e invadiam nossos lares... e nos faziam sorrir... e nos faziam chorar... e nos faziam sonhar!!!
Nesse instante fotográfico (acima, na primeira foto) daquela Abaeté ainda pacata dos anos 60, vemos as antenas espinhas de peixe portentosas da casa de "seu" Expedito e Dona Edna, próxima à Praça da Bandeira. "Foi ali que, assisti pela TV, emocionado, à chegada do homem à Lua", relembra o professor e escritor Jorge Machado.
Mas não era só em seus intestinos que as antenas de TV provocavam toda sorte de sentimentos. Ela mesma, por si só, protagonizava momentos memoráveis. Um dia, o Vandoca, um dos mais folclóricos personagens de Abaeté, tinha acabado de posicionar sua antena da melhor forma possível. Aboletava-se em seu sofá e agora, finalmente, poderia continuar assistindo a seu programa matinal favorito. Eis que, lá fora, homens da Celpa preparavam-se para cumprir as ordens de cortar a luz por falta de pagamento. Vendo que um dos técnicos preparava-se para subir no poste, o Vandoca suplicou, com aquela típica voz de malandro:
- Ei, tio. Dei o maior duro prá ajeitar a espinha de peixe. Deixa pelo menos terminar o He-Man!!!!
Centro comercial de Abaetetuba nos anos 80
Hoje, elas ainda estão lá. Mas já não reinam soberanas nos telhados cada vez mais povoados por outros recursos mais avançados de captação de som e imagens. Sua presença, emblemática de vários pontos-de-vista, do econômico ao social, hoje parece destoar da tecnologia que amplia sua abrangência reduzindo sua forma. Assim, entre antenas parabólicas, de TV a cabo, de internet, as antenas espinhas de peixe exercem mais um simbolismo: o da própria vida, que segue seu curso inexorável, de transformações que não pedem licença para chegar e ocupar seu lugar, de substituições impiedosas, de quem resiste o quanto pode e um dia há de sucumbir.
Fotos gentilmente cedidas por Jorge Machado
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