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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

REMANESCENTE CABRA MACHO



FRANCISCO GIRARD



Era natural de Campo Maior, estado do Piauí. Morou depois em Ubajara, região serrana do Ceará, passando pelo Crato, Juazeiro do Norte, Caruaru, e por aí afora. Retirante, a cada cidade fez jus a saga nordestina; sua peregrinação era condicionada pela imposição, pois as dificuldades o fizeram nômade. Com várias mulheres casou-se nesse meio tempo e a viuvez perpetuou-se. Filhos batizados contava vinte e dois. Orgulhoso, lembrava o nome de todos, os vivos e os mortos, sem contar os que tivera fora do casamento. Homem de estatura mediana andava de costume alinhado, barba não se via, mas o bigode bem cuidado era sua expressão, parecia postiço. Era tido como namorador de currículo, por onde passava fazia um consórcio de relações amorosas que deu origem à prole numerosa, premiando-lhe de orgulho. Esse era o perfil do patriarca Severino, que anistiado ao seu lugar de origem, com recurso pecuniário, construiu seu patrimônio na pecuária e em imóveis.


Campo Maior fica mais ou menos a vinte quilômetros do povoado onde mora Severino, este, visitava a cidade com freqüência pela manhã. Sebastiana vez por outra, ardilmente enciumava, deixando-o constrangido, num clima de desconfiança que expunha a soberba de Severino em justificar a rotina, associando aos negócios que explorava. Com jeito experiente de muitos amores vividos, não iria pôr tudo a perder. Carinhosamente com afagos e conversa dócil envolvia a companheira que fingia correspondência no amor. Severino sentia-se aliviado em achar que restituía-lhe a confiança.


Ao cair da tarde, como de hábito, Severino passou pela porta que dava acesso a varanda, afastou para si com a mão no dorso da cadeira, embalou-se com impulso do corpo, cadenciado pela cabeça, no que falou ainda com propriedade das mulheres que tivera, tinha, e, manuseando seu machismo, teria enquanto fosse vivo. Insinuativamente sentenciou-me a pergunta:


- Mas sinceramente, quantos anos você acha que tenho? Sessenta e nove? - repetiu Severino. Errou!


-Tenho setenta e oito anos, três meses e doze dias - falou valorizando silabicamente os numerais. Nasci em quatro de outubro, dia do padroeiro nordestino, São Francisco de Canindé. Garboso, costumava privilegiar-se da data natalina comemorando seu aniversário com entusiasmo, patrocinado pelo festejo e, reverenciado ainda mais com sua devoção ferrenha. Não obstante, machista, estimava por demais a vaidade, ao conduzir a vida profana tinha por hábito justificar a masculinidade no trato da conversa com os amigos. Impunha-se de credibilidade dizendo:


-Hei de apostar que passe vergonha com mulher. Jamais passei por esse vexame, até hoje nunca neguei fogo. Exibiu-se de haver ligado as trompas da atual mulher, numa iniciativa de conter inúmeros filhos. Espalhou sua fama de homem fogoso credenciado pela jovialidade da companheira Sebastiana, que contava trinta e seis anos. Todos a viam em cumplicidade de interesse explícito. Severino era respaldado pelo aval inverossímil da esposa, e a cortesia de Sebastiana garantia a estabilidade conjugal. Quem o conhecia, sabia que não poupava nas conversas essa auto-estima em promover-se:


- Duvido que essa molecada de hoje dê conta do recado. Sou do tempo do arroz de pequi, rapadura com feijão, cuscuz e carne seca de bode. Sem falar da gemada de ovo caipira, legítimo, com leite quente. E quando danava a beber dava preferência prá Tiquira com Marapuama. Essa era foguenta, pense! Parece que injetava direto na veia.


- Mulher, sai um café e me passa o fumo de rolo, sem demora!


- Mas muito me admira Sr. Severino, com esta idade que lhe nega a aparência, ainda tem filho de dois anos? Estou a um mês de completar cinqüenta anos e já procuro recurso fármaco. Se bem que minha mulher completou quarenta e oito anos mês passado e sua compleição física já denota ausência da juventude, demais, temos um casal de filhos. Mas essa vida extraconjugal, com garotas jovens, requer certo condicionamento.


- Cada um tem uma constituição orgânica, cada caso é um caso, não vamos misturar. Digo mais, tenho cá minha contrariedade; se não tivesse acertado esse filho, juro que estaria com outra bem mais nova. Afinal já estou no lucro da vida, o que quero com mulher velha?


Sebastiana reclinada coligiu as xícaras, pires, bandeja e, com um leve sorriso cúmplice, ao sair, olhou-me de um jeito como que não dando crédito; eu de posse do aval subentendido de sua companheira, tratei ao sarcasmo.


- Mas, mulheres novas exigem mais, tem mais libido, vigor; é a jovialidade, pra competir parelho, fica difícil!


- Está enganado. Sou homem experiente. Conheço das manhas. Num chego fobando, tem todo um ritual. Depois do jeito que me alimento!...


- Mas hoje a comida é comprometida, só hormônio. Não tem como se livrar: frango, carne, laticínios, enfim tudo...


- Alto aí! Tá esquecendo que sou do tempo da comida saudável! Nossa comida era de primeira. Prá compensar, só como frango caipira e bode criado na chapada..., ovo, leite de cabra, beiju; pão nem pensar, só bromato de potássio!


- Mesmo assim me causa admiração, nessa idade o Sr. não toma Sildenafil, Tadalafil, nada?


-O quê? Que diacho é esse “Silnefil, Tadafil”, que estas falando?


-É o princípio ativo do remédio para disfunção erétil!


- Pera aí! Disfunção erétil?


- Sim, impotência, isso mesmo!


- Tá achando que preciso disso? Me respeite, rapaz! Caminho todos os dias, fumo um cigarro justo nesse horário e nem bebo mais!


-Desculpe, não estou dizendo que precisa. É sabido que a vontade desse prazer é eterna. Ademais, somos privilegiados dessa droga, é um reforço e tanto, o que é pra somar que seja bem vindo. Sabe Sr. Severino, fico pensando nesses atletas olímpicos, que tem a carreira tão curta, e são fisicamente preparados. Eles não contradizem que o novo sobrepõe-se aos velhos. Veja o caso desses jogadores de futebol, insistem em não encerrar a carreira, mas... fazer o quê?


Sem me dirigir o rosto, olhou-me a furto e desconfiado. Movimentou-se na cadeira sutilmente irritado, esquivando-se, disse:


- Pois bem...! É, e por falar em olimpíada, seremos anfitriões em 2016. Até lá estarei firme e forte. Vai ser uma festa e tanto!


- Que vai ser uma grande festa, não resta dúvida. Nós merecemos um evento que nem esse. A conversa tá boa, Sr. Severino..., mas tenho que ir.


- Boa, muito boa mesmo! Mas, já que está avexado, fazer o quê? Boa tarde!


Severino era um homem que nem tantos por esse Brasil afora. Falava com determinação que intimava os ouvintes de credibilidade. Sua conversa nesses assuntos era carregada de virilidade. Adicionava sempre vantagem.


O certo é que persistia em desmistificá-lo. Vez por outra estava na varanda de sua casa, numa rodada de desocupados, a conversa fluía. Café passado na hora e o bate papo seguia. No bolso levava o testemunho “in loco,” um comprimido de “Viagra” embrulhado em papel de quatro ou cinco dobras; cuidadosamente bem protegido. Oportunamente disse que na noite anterior estive com uma garota de seus vinte e dois anos, que exigia todas as vezes que saíamos que tomasse a pílula do amor em sua presença, para certificar- se da expectativa, pois se frustrara num passado recente; daí a iniciativa.


Severino juntamente com seus amigos, três e cinco anos mais jovens respectivamente, Josias e Teobaldo, ficaram apreensivos com a narrativa e meio que desajeitados, num gesto assimétrico convergiram às cabeças num esforço de visualizarem o comprimido, que meticulosamente expunha do papel cheio de dobras, privando-me da visão.


- Este é o tal prá disfunção que falaste ontem? Disse Severino.


Josias e Teobaldo entreolharam-se, sem entender e, assimilaram que a novidade causou dissimulado interesse de todos. Quebrando o silêncio, com perguntas consecutivas Josias disse:


- Funciona mesmo? Quanto custa? E o efeito colateral?


Respondi a todas as perguntas e a muitas outras mais, dando garantia do sucesso. Mas, ora em sintonia, ora não, recusavam usá-lo, ainda que a cobiça despertada causasse desejo, mas eram reféns de suas palavras. Afinal, eu, usuário e bem mais novo, ouvia sempre a frase textual “até hoje não preciso” que contundentemente falavam em contrariedade com a lei natural. Ainda assim, encontrei neles flexíveis resistências de interesse. Mas nada que intimamente não padecesse imensa curiosidade e, retirando-me, deixei-os questionando a novidade que nunca esteve tão próxima. Que os olhos do desejo o digam. Unânimes, planejaram cada um por si apropriar-se da novidade.


O recôndito lugarejo de Campo Maior era o berço natalino de Severino. Povoado que não poupava todos de se conhecerem. Os apelidos batizados pela comunidade tinham mais resposta ao censo de informação que os nomes de registro. Isso dificultava manter o anonimato, mas nada que não se desse um jeito.


Portanto, parecia difícil garantir a compra do remédio em sigilo, mas Severino, astuto, conseguiu manipular premiando financeiramente um “corretor de impotência”. Este ao fazer as aquisições livrava-se da vergonha revelando o destino. Sem saber que era de conhecimento de todos da farmácia, Severino costumeiramente divertia-se com as meninas e, com aferição sexual conferida, empolgadamente contava vantagem, ainda que parcial, pois, agora submetido a efeito laboratorial, negava a apropriação do remédio. Em casa ainda com efeito dessa firme aquisição, Sebastiana, agora meio que sacrificada, suspeitava da virilidade, pois esta, desde que o conheceu não lembrava que tivera.


A novidade causou euforia nos usuários e nos donos das farmácias, estas acusaram a demanda substancial dos remédios, que engordaram seus lucros. Sem contar que outros setores da economia, também pegaram carona..., ponham-se a imaginar. As meninas aproveitaram a investida dos novos clientes e fizeram a festa, logo passaram a ser exímias exploradoras desses talentosos da terceira idade. Mas o preço do remédio era um obstáculo pra muitos, dificultando o consumo.


Josias e Teobaldo socializaram a compra, mas não a estratégia, e, de posse, costumavam exibir sempre o mesmo comprimido como álibi de aventuras mundanas. Enganavam-se reciprocamente. Ambos tinham precaução com a saúde debilitada, receosos não se automedicavam, apenas nas conversas validavam sua sexualidade exibindo o comprimido..., este já vencido.


Com o passar do tempo, o mito machista foi sendo derrubado com o advento proliferado dos genéricos Paraguaios. A droga era comercializada em camelôs, vulgarizou-se, o que facilitava a aquisição dos menos favorecidos e envergonhados. Um dos remanescentes machista era notícia da primeira página do jornal local. “MORTE SÚBITA NO MOTEL.” Foi encontrado o corpo de Francisco das Chagas Lopes, vulgo Severino. Com ele acharam uma cartela de PRAMIL, segundo testemunhas, suspeita-se que tomou uma dose elevada, no intuito de corresponder com a jovialidade da menor J.M.R., que tentou evadir-se.


Não queiram imaginar a consternação que causou no lugarejo a morte de Severino, no seio dos amigos e particularmente no coração das meninas. Andava de bem com a vida, homem ainda forte, demonstrava saúde. Sebastiana não podia acabar de crer na morte do companheiro, ao encontrá-lo, no quarto achou o cadáver na cama frio, de olhos entreabertos e, um leve sorriso de arregaço irônico, camuflado pelo bigode. Sebastiana finalmente compensava-se dos espólios.

2 comentários:

  1. Naldo, parabéns pelo blog. Vinha acompanhando o ótimo desempenho do mesmo, sem pronunciar-me. Agradeço o convite e, reitero o prazer de ser partícipe desse espaço literário, permitindo-nos a oportunidade de dividir com os conterrâneos o prazer desse manusear com as palavras que faço de maneira humilde, não como necessidade de escritor, porque não o sou, mas como vaidade nos momentos de ociosidade.Fifiti

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  2. Ffiti, como amante das letras que sou, sinto-me orgulhoso de poder oferecer espaços, ainda que humildes, para a produção literária de nossa gente. Você é dos nossos, daquele grupo que dispensa algum tempo para materializar a veia de escritor. Parabéns pelo texto.

    Abraços,

    Naldo Araújo

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