Até parece que foi ontem, mas já se passaram dez anos. O dia 30 de janeiro de 2000 mal tinha começado e lá estávamos eu e a Edilma viajando para Belém. Seguimos praticamente mudos. Era um domingo de uma viagem com poucos passageiros. As ruas do comércio da capital não estavam tão agitadas. Mas o silêncio maior, mesmo, estava em meu interior. Rezei para que o ônibus chegasse o quanto antes àquele hospital. Desmarquei um compromisso naquele dia. Tinha de estar ali. Na véspera, fiquei preocupado com o recado dando conta de que minha tia Mundica queria ver-me com urgência. Nos últimos anos, a saúde frágil a fazia retornar com frequência àquele lugar. Encontrei-a outras vezes em um leito de hospital. Ela ali, com aquela compleição física miúda que só fazia aumentar o seu aspecto de mulher bondosa, de uma candura inesquecível. Naquele dia, seria diferente. E logo eu saberia o porquê.
Ao ver-me, Tia Mundica abriu um sorriso tímido. Gostaria, certamente, de ter escancarado sua alegria. Mas a fragilidade não lhe permitia maiores esforços. Passamos a conversar. Somente eu, ela e minha irmã, que a estava acompanhando há alguns dias. Para ela, que nunca casou nem constituíra família, nós, filhos da irmã, Teca, éramos sua prole. Tinha sido assim praticamente a vida toda, desde que meus pais se separaram e passamos a morar com o avô Caetano. Amor nunca nos faltaria. Apoio também não. Cenas que nunca cessarão.
Com os parcos recursos da produção de bolos e doces, Mundiquinha nunca se furtou a manter a casa. E foi além. A mim, particularmente, não faltaram esforços para que seguisse estudando. Sabíamos que nossa renda familiar não nos permitia nada além de uma vida digna. Então, como esquecer o dia em que minha tia não contou conversa em presentear-me com uma daquelas enciclopédias que deviam custar os olhos da cara? Quando sonhei em continuar os estudos em Belém, ela garantiu a realização dessa etapa importante de minha vida. As dificuldades me fizeram pensar em desistir algum dia. Não tinha mais esse direito. Havia alguém, em particular, que acreditava em mim. Amante de festas e reuniões familiares, quisera o destino que Tia Mundica não estivesse ao meu lado em um momento marcante: eu, em Abaetetuba, festejando a aprovação no vestibular. Ela, em Belém, chorando emocionada ao telefone. Não sem antes espalhar por toda a vizinhança que "o meu filho" passou na universidade. Um dos inúmeros tratamentos de saúde a impediram de me abraçar, de me beijar, de me incentivar ainda mais a seguir na luta. Mas estávamos, de qualquer jeito, unidos pelo sentimento de vitória.
E, agora, estava eu ali, naquele quarto frio e triste de hospital. Minha tia tentava contar algumas coisas engraçadas. Era a síntese de uma vida cheia de alegrias e doações. Passamos boa parte daquele domingo juntos. Tudo, então, passaria a ter um fim. A tarde... o horário de visitas... e um capítulo especial de minha existência. Mundiquinha pediu-me um leite. Gostei de tê-la ali, no colo. A metáfora perfeita: eu cuidando de quem sempre cuidou de mim. De repente, a senhora falante emudeceu, o corpo foi perdendo vida, os olhos cairam no vazio. Ali, nos meus braços, esvaía-se a história de uma das mais belas figuras humanas.
Passados alguns dias, ao retornar à casa de minha tia, aqui mesmo em Abaetetuba, cometi o lapso dos que se negam a acreditar que alguém muito querido se foi. Por um mísero instante, pensei em procurar tia Mundica na cozinha. Sapeca, ela costumava esconder-se quando ouvia minha voz. Mas o esconde-esconde nunca mais se repetiria. Ainda haveria de emocionar-me remexendo em suas gavetas, tateando suas roupas miúdas cuidadosamente arrumadas. Manuseei, com carinho, os livros de culinária, de onde saiam toda sorte de delícias. Ainda guardo a cena recorrente da casa toda invadida pelo aroma dos bolos que ela fazia ou por encomenda ou para algum evento de família.
Mundica era uma dessas pessoas com um magnetismo impressionante. A nossa casa era, de toda a família, uma das mais humildes. Mas era lá que todos se reuniam, faziam algazarra. Lá, onde estava a tia querida de todos.
Hoje, exatos dez anos depois, reforço a certeza de que não é possível tanto amor desaparecer por completo. Existir, todos existem. A eternidade é para os que conseguem permanecer vivos como exemplos de amor, compreensão, sabedoria. O amor é, sim, visível.
Naldo Araújo
Naldo o amor é visível sim. È um sentimento tão forte e intenso que faz com que a pessoa que a gente ama não seja esquecida. É o que aprendo contigo quando falas da Tia Mundica. Certa vez falastes sobre a morte de uma maneira delicada, questionando o fato de como seria possível a pessoa que a gente ama nos deixar? Para onde iria tanto amor que sentíamos por aquela pessoa? Fica com a gente mesmo, no fundinho do coração, argumentavas! É uma sensação dolorosa, mas gostosa de sentir: è a saudade. Como uma dor pode ser gostosa? A dor do amor que protege, que orienta; um amor que se faz sempre presente.É o caso da tia Mundica. O teu amor por ela nunca vai deixar de existir, por isso ela está sempre ,ao teu lado, como um anjo protetor, te iluminando!É lindo observar que esse sentimento traz de volta, de uma maneira muito especial, a tia Mundica. As lembranças, que não ficaram esquecidas porque não permites, fazem com que tia Mundica sempre esteja entre nós. Admiro tua força! A tia Mundica está muito orgulhosa do filho que educou e formou !
ResponderExcluirUm grande abraço, Edilma Neves
Não me dava conta de tantos anos passados. A Mundica teve grande importância na minha vida. Aliás boa parte de tua família, pois éramos vizinhos.Mas a Munidica foi a única pessoa em quem minha mãe tinha confiança de entregar a filha moça,de pai brabo e ciumento, para ir escondido às festas do Abaeté Futebol Clube.Assim comecei minha vida social, aprendi a dançar, gostar de carnaval (o bloco da Mundica sempre foi dos melhore).Sempre soube do imenso coração daquela mulher pequeninha, que também marcou minha vida.
ResponderExcluirNaldo,
ResponderExcluirApesar de ficar um pouco na dúvida a lembrança da fisionomia da personagem Mundica, não lembro com exatidão , quero externar que ao irmos lendo o texto, nos envolvemos com sentimentos de perdas e, com certeza vivenciamos cada um de nós a ausência saudosa das pessoas amadas. Cada um na sua intimidade recorda e, nos vem à saudade. Cada um a sua maneira expressa o sentimento, e cumpre-se o desejo. Este vazio provoca a necessidade de se fazer referência póstuma da mais significante demonstração de amor às pessoas que nos marcaram.
Grande abraço,
Francisco Girard ( Fifiti )
Naldo,
ResponderExcluirApesar de ficar um pouco na dúvida a lembrança da fisionomia da personagem Mundica, não lembro com exatidão , quero externar que ao irmos lendo o texto, nos envolvemos com sentimentos de perdas e, com certeza vivenciamos cada um de nós a ausência saudosa das pessoas amadas. Cada um na sua intimidade recorda e, nos vem à saudade. Cada um a sua maneira expressa o sentimento, e cumpre-se o desejo. Este vazio provoca a necessidade de se fazer referência póstuma da mais significante demonstração de amor às pessoas que nos marcaram.
Grande abraço,
Francisco Girard ( Fifiti )
Que texto lindo! demostra afeto, amor e carinho que você possui por sua Tia!
ResponderExcluirParabens!!!!
Parceiro, fiquei emocionado em lê esse texto, lembrei da vizinha mundica, e dos bolos e docês maravilhosos, um abraço do amigo Chico Laser.
ResponderExcluirObrigado a todos os amigos e amigas que escreveram e continuam escrevendo. Nesses dias turbulentos, em que o blog esteve no centro de polêmicas, o texto sobre minha tia foi um alento. Mais uma vez, ela, mesmo ausente, me garantiu a sensação de paz e conforto. Nunca a esquecerei. Em nome de meu amor e gratidão.
ResponderExcluirSaudade da tua tia mudica,era melhor confeiteira da cidade....
ResponderExcluirNaldo manda recador sec finança Onaldo que seu palacio està ficando un luxo,será que vai dá tempo termina até fim da administrção.povo está de olhooooooooooo.....
ResponderExcluirOi Naldo fiquei emcionadíssima ao ler tua mensagem de saudades sobre a inesquecível Tia Mundica. Também tenho muitas recordações dela que marcaram a minha infância e sei que ela jamais será esquecida por nenhum de nós da família, não somente por seus maravilhosos bolos e doces mas, principalmente, por sua grande humildade e por seu exemplo de amor. Abraços também com saudades.....
ResponderExcluirRenata Neri
Amigo Naldo Araujo,
ResponderExcluirAmor, carinho e poesia leio no texto sobre a sua querida Tia Mundica, e suas palavras encharcaram-me o coração de saudade e dos meus olhos vazaram lágrimas que eu não sabia que ainda existiam em mim. É que eu também tive uma pessoa assim na vida. Irmã de minha mãe querida, a minha “Tia Mundica”, atendia pelo nome de Rita. Era dessas pessoinhas mirradas, cabelos branquinhos, sorriso fácil, faces marcadas pelo chicote do tempo. Mulher de físico pouco, quase nada, miúda, mas com um imenso coração que eu não sabia como lhe cabia, e que derramava carinho e bondade o tempo todo.
A minha Tia Rita, sempre tinha um sorriso para todos e suas palavras me acarinhavam a alma e isso me fazia completamente fã daquela pessoa maravilhosamente pura, doce e generosa.
Coincidindo com sua Tia Mundica, amigo, também a minha Tia Rita não constituiu família e por conta disso, ela sempre morou conosco, e eu tive o prazer de crescer sob aqueles carinhos que eu pensei imortais e hoje tenho a impressão de que, não aproveitei o suficiente, e nem retribui nada do muito que recebi de graça daquele coração tão amável.
Cresci recebendo aquele amor e quando me faltou aquela fonte tão preciosa, me senti meio que sem ar, meio plantado num deserto sem água, meio sem rumo.
Lembro-me como se fosse hoje, aquele corpinho mirrado nos meus braços trêmulos, perdendo suas forças, seus olhos fechando-se para vida e seu carrasco, um maço de cigarros pela metade na cabeceira da cama, vendo mais uma de suas inúmeras vitimas sendo apagada, se esmaecendo no ar como fumaça.
Tenho consciência que se foi como fumaça no ar a materialidade de minha querida e amada Tia Rita, mas a sua alma abençoada continua a velar por mim, me aconselhando como outrora, quando tantas vezes eu, menino levado, desobedecia minha mãe, e suas palavras eram sempre de compreensão e diziam-me com jeitinho que eu devia obedecê-la. Sim, a minha tia também teve papel fundamental na minha criação e devo muito a ela.
Perdoe amigo Naldo, essas palavras que não lhe trarão nenhum acréscimo a seu blog, mas, é que não pude deixar de recordar e não quis perder a oportunidade de agradecer a Deus ter me dado essa pessoinha mirrada de coração oceânico.
Quero antes de me despedir, dizer que sou cearense, que tenho uma amiga conterrânea sua, uma pessoa que amo muito, que estou feliz em visitar seu blog, e tomar a liberdade de ser a partir de agora um seguidor desse espaço que cuidas com tanto esmero e talento.
Parabéns!
Abraços fraternos
Varley